"Cabra da peste” virou “cabrinha”, que logo passou a ser só “cabinha”. O jeito de chamar as crianças lá no Cariri, transformado de boca em boca, revela a oralidade que tantas vezes substituímos pela linguagem escrita. Terra de Cabinha, título escolhido para o livro onde a jornalista Gabriela Romeu e o fotógrafo Samuel Macedo depositam as histórias das crianças da região, aponta, então, para uma intenção de natureza dupla: ao mesmo tempo em que quer resgatar a cultura oral de apreensão de saberes e fazeres, também discute a importância de transportar a memória intangível para o concreto do livro.
Fruto de uma extensa viagem pelos quatro Estados que formam o Cariri nordestino – Paraíba, Pernambuco, Ceará e Piauí –, o livro apresenta para a criança da cidade grande as brincadeiras, receitas, adivinhas, tradições, causos, receitas e costumes da criança do Cariri e seus incontáveis contadores de histórias. Histórias de meninos que viram reis, caçam jumentos e fogem de encantados.
Dessa imersão pelos quintais do Brasil, nasceu o projeto Infâncias, do qual este livro faz parte. Idealizado por Gabriela e pela também jornalista Marlene Peret, o projeto começou há três anos, com a proposta de investigar as diferentes culturas de infância que compõem o jeito brasileiro – e ao mesmo tempo global – de ser criança: a ludicidade. “O brincar é a língua universal da infância. As crianças brincam em todos os tempos, territórios e contextos. Ainda que confinadas nas escolas, que engessam corpos brincantes em carteiras enfileiradas, o impulso do brincar rompe a aridez imposta pelo mundo dos adultos”.
Publicado pela editora Peirópolis em uma edição de encher os olhos, Terra de Cabinha será lançado em São Paulo neste sábado, 20 de agosto (serviço completo abaixo), mas, antes, viajou de volta para o Nordeste, onde passou pelas mãos dos cabinhas, matriarcas e mestres que puxaram essas histórias da memória, uma a uma. “Muitos dos cabinhas já estavam crescidos, alguns já não eram mais crianças. Vi meninos e meninas acariciando as páginas do livro como que tentando captar um momento de infância que se dissipou no tempo”, relembra Gabriela.
E o livro não se esgota em sua intenção de mostrar a criança daqui como é a criança de lá. Antes disso, transforma esses meros advérbios em lugar constante, de visitação sempre possível. Por isso, se transforma em um material rico de pesquisa sobre a brincadeira, a cultura da infância, e oralidade e a educação. Tanto é que o prefácio fica por conta de Gandhy Piorski, um dos maiores nomes da pesquisa da cultura do brincar no Brasil. Para exemplificar o grau de lirismo que permeia todo o livro, aqui vai um trecho da fala de Gandhy:
“A infância é um estado que se sustenta pelo contínuo trabalho de instilar, peneirar, filtrar o mundo. Crianças são como espécies de pássaros garis da natureza: fazem continuamente o trabalho de renovar as sobras do mundo, digerindo-as em uma calórica forja imaginadora, transformando-as em novos nutrientes, artefatos da brincadeira, crenças e certezas jovens, recém-nascidas, porém embevecidas de fascínio."
Quem quiser antecipar o mergulho nessa infância do Brasil profundo, pode acessar conteúdos extras do livro no site da editora, que disponibiliza áudios, vídeos, depoimentos, entrevistas e minidocumentários sobre esse universo.
Mais do que isso, só mesmo buscando junto de quem fez. Por isso, o Garimpo foi conversar com a Gabriela Romeu para saber quais as impressões e sensações trazidas por esse universo de encantarias infantis. O que ela conta não está no livro – sorte a nossa! – e vale cada linha!
Como começou a sua curiosidade de trabalhar com crianças deslocadas dos centros urbanos?
Ao atuar como jornalista dedicada à infância, eu sempre cobri as realidades infantis pelo Brasil. As pautas que mais me instigavam eram as que revelavam as infâncias: como é a vida das crianças numa ilha do Maranhão, das crianças angolanas que moram no Complexo da Maré, no Rio, ou as crianças ribeirinhas que têm o rio como estrada, entre outras realidades que tive a oportunidade de conhecer. Mas acho que essa história começou mesmo na minha infância, quando eu ouvia atentamente os relatos dos tempos de meninas de minha mãe e minhas tias, todas mineiras e cheias de prosa. Eu adorava ouvir as histórias dessa infância rural, pé na terra. Foi ali minha primeira incursão etnográfica pelas infâncias do Brasil profundo.
Em termos de cuidado com a infância, grandes centros urbanos estão muito aquém do ideal. Como você acha que podemos evoluir para que as cidades percebam melhor a criança?
Sempre que volto dos lugarejos que visito no Brasil profundo fico pensando o que perdermos nesse processo intenso de urbanização do país.... E acho que foi se dissipando com o tempo algo que precisamos resgatar: o senso comunitário, do viver em comunidade, o que é essencial para uma infância livre, autônoma. Nas comunidades tradicionais, as crianças andam livres pelos quintais, pois estão sendo cuidadas por todos, pelo tio, avó, vizinha. Sabe aquele dizer africano de que “é preciso toda uma aldeia para cuidar de uma criança”? Mas acredito que os movimentos todos que se disseminam pelas cidades, repensando o espaço público na dimensão do humano, podem ser um caminho para que a cidade acolha melhor as crianças e suas infâncias.
Depois desses quatro anos investigando diferentes culturas de infância, acha que existe um componente comum, uma espécie de ingrediente universal da infância, que faz um guri, um cabinha ou um piá serem crianças onde quer que elas estejam?
O ingrediente universal da infância é o brincar, a língua universal da infância. As crianças brincam em todos os tempos, territórios e contextos – às vezes mais, às vezes menos. Eu me lembro de meninas que brincavam de pular elástico com os dedos, na sala de aula. Ainda que confinadas nas escolas, que engessam corpos brincantes em carteiras enfileiradas, o impulso do brincar rompe a aridez imposta pelo mundo dos adultos.
Percebo também outros aspectos que ligam as infâncias do Brasil profundo: um tempo menos fragmentado e segmentado, um aprendizado permeando a vida, um território muitas vezes convidativo ao exercício de ser criança, saberes compartilhados entre adultos e crianças na comunidade.
Há ainda os dilemas de crescer, os ritos de passagem, que fazem parte da vida de meninos e meninas por todo o Brasil, seja da cidade, seja do interior. Romper o mundo da infância e adentrar a adolescência é um desafio grande para todas as crianças. A diferença é que em algumas comunidades tradicionais ou em povos indígenas essa passagem é marcada, celebrada, ritualizada. No meio urbano, nas grandes cidades, os ritos muitas vezes se diluem no apressado da vida.
No prefácio do Terra de Cabinha, o artista plástico Gandhy Piorski diz que o livro apresenta as imagens fundamentais de uma “infância de cosmicidade”, um conceito de Bachelard. Pode explicar o que é isso, uma infância de cosmicidade?
Um desafio e tanto explicar os pensamentos de Gandhy Piorsky, que está para falar desse e de outros assuntos no livro Brinquedos do chão, que também será lançado pela editora Peirópolis. Mas vou fazer uma tentativa, bem breve. Uma infância cheia de cosmicidade abarca uma memória coletiva das origens do mundo, dos cosmos. É uma infância que enfrenta o medo da noite, que bem traduz os mistérios do mundo, e pressente que a natureza é sábia e também devoradora, pois ali vivem as Caboclinhas que levam as crianças para a mata profunda e os tios são também Lobisomens.
Ainda no prefácio do livro, destaca-se o fato de as crianças da cidade estarem perdendo o “valor nutricional dos causos, mitos, lendas, histórias e práticas de diálogo com o mundo natural”. Pra você, o que a falta de todos esses elementos causa a uma criança?
Eu cresci ouvindo uma tia querida, Cida, contando causos de medo em noites em que dormíamos encolhidas – eu me lembro e ouço vivamente a sua voz e sinto ainda hoje o cheiro do talco que ela usava. Eram histórias sobre diabinhos e outras criaturas amedrontadoras que habitaram a infância de minha tia e, narradas para mim naquelas noites, passaram a habitar a minha também. São histórias que nos conectam com imagens poderosas da ancestralidade e das origens, como nos diz Gandhy Piorski. É uma triste perda deixarmos de nos conectar com essa mitologia que vem sendo cultivada no imaginário da humanidade há tempos. E o pior é que, em muitos casos, histórias dessa natureza sofrem de uma assepsia tamanha, tornam-se rasas e sem força, como se a criança não fosse forte o bastante para encarar o poder das encantarias do mundo.
No livro, está muito presente a cultura da oralidade, crianças que absorvem saberes de seus avós, por meio das histórias. Isso se perdeu no cotidiano da vida nas cidades?
O momento de contar histórias se perdeu em muitos lugares – e não só nas cidades grandes. Por onde eu ando procuro os narradores de histórias. Uma vez perguntei a uma senhora contadora de histórias sobre os Lobisomens que rondavam seu povoado. E ela disse: “Não apareceram mais depois que a luz chegou por aqui”. O imaginário vai sendo alimentado pelas histórias narradas na TV, num livro, no cinema e nos games. Mas acredito que é preciso insistir nesses momentos das histórias de boca, as narrativas da oralidade, cheias de afetos outros, com as crianças em casa, na escola, no bairro, na comunidade.
Samuel Macedo dedica o livro ao seu pai, Chico, por tê-lo deixado ser criança. O que é deixar ser criança?
Entendo que é permitir o exercício de crescer, sem agendas estressantes e com tempo para o ócio inventivo das crianças. Criança precisa de tempo e de espaço; o resto ela inventa.
Como foi o retorno ao Cariri com o livro pronto? Como os cabinhas reagiram quando viram suas histórias formatadas em um livro?
Foi muito especial o retorno ao Cariri depois de muitas andanças por lá. Eu e o fotógrafo Samuel Macedo percorremos muitas localidades procurando os cabinhas do livro para devolver-lhes as imagens e as histórias que nos ofertaram em momentos de afeto e diálogo. Muitos dos cabinhas já estavam crescidos, alguns já não eram mais crianças. Vi meninos e meninas acariciando as páginas do livro como que tentando captar um momento de infância que se dissipou no tempo. Também visitamos os terreiros dos mestres e dos contadores de histórias, que ficaram gratos com o reencontro. Situações intensas ocorreram. Ao batermos na casa do Tio Tonho, estávamos ávidos em entregar o livro para aquele avô cheio de histórias. Um cabinha que nos recebeu contou que ele tinha morrido há alguns meses. Chegamos atrasados praquele encontro. Deu um aperto no peito e a constatação (óbvia, aliás) de que, se os livros cristalizam uma história ou um momento em palavras e imagens, a vida segue seu curso.
Além do retorno para apresentar o livro, o projeto prevê algum tipo de continuidade junto às crianças dos lugares por onde passou?
O “Infâncias”, idealizado por mim com a jornalista Marlene Peret e com a parceria de vários amigos queridos – Michelle Antunes, Vanessa Fort e Gabriella Mancini, além de Samuel Macedo –, é um projeto que prevê alguns desdobramentos em forma de livro, filmes e exposições a partir de pesquisas feitas com as crianças. Para o Cariri, finalizamos também um curta-metragem documental, Meninos e Reis, que traz o fascínio dos cabinhas pelo reisado, um folguedo bem popular na região. O filme está rodando festivais – e ganhou o prêmio de melhor documentário na tradicional Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis. Queremos muito seguir no diálogo com as crianças do Cariri e há ideias de outros projetos. Mas vamos neste semestre nos dedicar a espalhar as notícias dos cabinhas para conectar realidades e criar a ponte entre infâncias que estão tão longe e tão perto de todos nós.
O que está por vir? Que projetos está desenvolvendo no momento?
Temos mais dois livros para publicar e estamos trabalhando no desenvolvimento de uma série de TV com narrativas de crianças de todo o Brasil em parceria com outras duas produtoras – e espero logo poder dar mais detalhes sobre esse projeto! No mais, gostaria de voltar à estrada no ano que vem, fazer outras incursões e seguir no diálogo com as infâncias brasileiras
Fonte: Garimpo Miúdo
Fonte: Garimpo Miúdo