Marie-Ange Bordas é um ser em constante movimento. Com formação em Jornalismo, seu campo de ação se estende para a fotografia, escrita, antropologia, ciência social, artes plásticas. Mas o que talvez defina muito melhor o que ela faz está num verbo simples: escutar. Escutar e ser “artista-ponte”, como ela diz.
Por isso é que seu mais novo lançamento, o livro infantil “Manual das crianças do Baixo Amazonas”, faz barulho na urgência atual de falar sobre a criança que cresce longe do que conhecemos como civilização moderna. Que saberes elas têm? Afinal, há um componente universal em toda infância que faz a criança ser criança onde quer que ela esteja? Que tipos de conhecimentos é possível transpor para a cidade?
O livro faz parte do “Tecendo Saberes”, projeto com três anos de atuação em diversos cantos do Brasil. Em 2014, ele visitou as crianças de comunidades quilombolas do Baixo Amazonas (Pará) e do povo indígena Huni Kui do Rio Humaitá (Acre). O produto desses encontros são livros e DVDs que defendem a preservação e conhecimento dos saberes da cultura tradicional brasileira.
O mais recente, “Manual das crianças do Baixo Amazonas”, acaba de ser lançado em São Paulo, durante uma oficina no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, e foi feito no Pará, por mais de 100 crianças e jovens de cinco comunidades extrativistas remanescentes de quilombos: Mondongo, Cachoeira Porteira, São José , Cuecé e Silêncio. O livro ganhou uma tiragem de 1.200 exemplares, e por ora não será comercializado, mas qualquer pessoa pode fazer download no site do projeto (clique aqui para acessar), e chegará às mãos das crianças dos locais visitados. Uma das premissas fundamentais do projeto, segundo Marie, é o retorno às comunidades, que se deu em parceria com as Secretarias Municipais da Educação das cidades de Obidos e Oriximina. Além do lançamento e distribuição por lá, houve formação para professores locais para utilização dos livros em sala de aula.
Os pequenos leitores que acessarem este livro vão saber da boca de outras crianças que foram os escravos africanos, trazidos para a Amazônia para trabalhar nas fazendas de cacau, algodão e cana-de-açúcar, que fizeram esse chão por onde muitas delas podem passar nas férias. Vão saber que, se nossos antepassados índios não tivessem compartilhado o que sabiam sobre a mata, não teríamos chegado onde chegamos. Vão aprender sobre ancestralidade, memória, oralidade, e absorver a valorização do tradicional por meio da empatia e identificação.
Afinal, todo o conteúdo que está no livro não veio só do significado histórico, mas da importância que as crianças dão àqueles conhecimentos tão cotidianos. Quando uma criança da cidade aprende ou que, no Baixo Amazonas, barco é carro e água é estrada, ou que quando uma criança de Mondongo (comunidade tradicional da região) diz que o rio “tá de carneirinho”, está se referindo à maresia, ela automaticamente reconhece aspectos importantes para o entendimento da cultura.
Quando perguntam sobre suas estratégias de aproximação com essas comunidades, Marie conta que um dos seus métodos de escuta com as crianças é justamente não ter método nenhum. A proposta do projeto é chegar até as crianças nunca com algo pré-definido, mas sim escutando as suas necessidades e anseios, querendo saber o que ela quer contar, e a partir daí, criar uma narrativa com os seus saberes mais intrínsecos. “O ideal pra mim não é que as crianças façam o livro, mas que elas pensem no livro, em como ele pode ser", conta a idealizadora do projeto.
Nesse sentido, Marie defende a desescolarização do conhecimento sobre povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outros, libertando a palavra “tradicional” do ranço de preconceito e endurecimento que normalmente recai sobre ela. “Tradição é uma coisa em movimento, e as crianças estão construindo tradição”, explica.
Outra preocupação do projeto é, durante as oficinas, sempre partir do não conhecimento, deixar de lado as ideias pré-moldadas sobre um povo ou uma cultura. “O índio sempre aparece na sala de aula como índio, não como criança. É apresentado não como um indivíduo, mas como uma matéria a ser estudada”, destaca a artista, ressaltando que conceitos muito básicos como “o que é casa?” variam muito de um lugar para outro, e, para contar uma história, é fundamental considerar o que cada criança pensa sobre ela. “A identidade cultural é um fator de resiliência, e para entender isso é preciso compreender os conceitos de cultura, família e lar a partir do ponto de vista de quem vive aquela realidade”.
Quem folheia o livro, tão rico em detalhes e visivelmente criado por muitas mãos, pode pensar: mas como fazer isso? Um dos segredos é olhar para o outro não a partir do que nós somos, mas a partir do que ele é. “O importante é ressignificar o entorno das pessoas a partir da sensibilização de diversos sentidos – olhar, olfato, audição. Respeitar a subjetividade e os valores da cada um, decifrar criticamente as representações de fora e descontruir discursos adquiridos”, pondera Marie.
A arte como espaço de liberdade e de fazer política
De família metade francesa e metade gaúcha, Marie-Ange incorporou cedo o título de cidadã do mundo, e saiu de casa com 15 anos. Morou na Austrália, na Europa e em diversos países da África, quase sempre trabalhando com crianças e identidade cultural. “Eu sou nômade por opção. Por isso, quero entender a realidade daqueles que não tiveram escolha. Quero desenhar outras formas de estar no mundo”, diz.
Marie se refere não só a pessoas em situação de refúgio e guerra, mas também àqueles que são obrigados a deixar suas terras para viver em outro lugar, que se deslocam de seu chão seguro e perdem com isso a própria identidade, como acontece com tantas comunidades ribeirinhas das cinco regiões do Brasil, principalmente em áreas alagadas por construções.
Confrontar os pequenos com uma realidade que faz parte do Brasil a partir de relatos pessoais das próprias crianças que a vivenciam é um jeito de horizontalizar o conhecimento, transmitir o peso, as cores e o cheiro da experiência - experiência esta que talvez ela não tivesse de outa maneira. “Reportar não é suficiente, eu quero interferir na realidade. Por isso é que eu busquei a arte, que é um espaço de liberdade. Ser artista, pra mim, é agir como um ser político. Temos a obrigação de articular mundos”, explica Marie.
Seus projetos participativos de arte, alfabetização visual e mídia independente são a forma que ela encontrou para chamar o resto do mundo para uma conversa sobre o valor de aspectos tão afastados da infância urbana, como a preservação da memória dos que passaram por aqui antes de nós e a relação com o outro. O "Manual do Baixo Amazonas" não fica só na publicação, e, como continuidade do projeto, cita a diversidade de ações em torno do livro. "Criamos diversas atividades para que o conteúdo transcendesse o número de exemplares impressos e pudesse atingir crianças de todo o Brasil. Além do blog e da página Facebook, temos a "programação "Tecendo Saberes", disponível para ser apresentada em centros culturais, escolas, bibliotecas, feiras, e que consiste em espetáculo de contação de histórias, sessão de cinemia comentado, exposição, bate-papo com atividades de sensibilização à temática e oficina de mediação para educadores e bibliotecarios"
Outro aspecto de continuidade é o cuidado com todos os que participaram - direta ou indiretamente - dos livros norteia todas as ações do projeto: voltar para apresentar o resultado do trabalho. Os mais velhos da comunidade receberam com emoção o livro já pronto, e Vó Luzia, matriarca do Mondongo, decretou: “Agora a gente já pode morrer porque tudo nosso já esta guardadinho aqui neste livro”.
Devolver para a comunidade em forma de livro uma história que já é deles configura uma das premissas principais de um trabalho de preservação de memória, e simboliza a maneira como cada um que passa por um lugar também passa a fazer parte dele, das pessoas, da História.
Durante o lançamento do livro em São Paulo, Marie citou um pensamento de Hanna Arendt: É preciso “confiar na palavra e na ação como modo de vivermos juntos”.
Fonte: Garimpo Miúdo
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